Livra-me, Senhor, da boca mentirosa!


"Na minha angústia clamei pelo Senhor" - foi o início deste Salmo 120/121. Estejamos atentos, que esta não se trata de uma simples angústia sentimental, emocional, psicológica, digamos assim. Trata-se, antes, da experiência profunda da limitação da vida, da nossa pobre situação humana, feita de fragilidades, imprevisibilidades, incertezas, sofrimentos... Também não se trata de ser um negativo, um melancólico, um desgostoso pela vida... Esse peregrino angustiado é o homem que cai em si, com serenidade e realismo, tocando aquilo que é o caminho do homem sobre a terra: "Eu sei, Senhor, que não pertence ao homem o seu caminho, que não é dado ao homem que caminha dirigir os seus passos" (Jr 10,23). Angustiado sim, porque com um coração feito  para o infinito, descobre-se, percebe-se imprensado na estreita realidade deste mundo.

A vida tem sua beleza e  experimentamos no mais profundo de nós que viver é bom, viver vale a pena! Planejamos, trabalhamos, sonhamos, amamos, lutamos por objetivos e ideais. Isto porque nossa percepção radical da vida é positiva. Uma pessoa sadia não deseja morrer, não cultua a morte; toda a sua tensão é para a vida; é a vida que a emploga e a encanta. E assim deve ser!

Mas, apesar dessa percepção positiva de fundo que temos da vida, se formos responsáveis, se medirmos com realismo e serenidade nossos dias neste mundo, teremos de admitir que não somos os senhores dos planos, os senhores absolutos dos nossos dias. Ainda que alguém seja muito realizado e satisfeito com sua existência, se tiver a coragem se olhar um pouco além de si e do seu momento presente, perceberá o quanto somos todos precários, e, mais ainda, o quanto nossas realizações não suprem totalmente a sede de plenitude e sentido que nossa situação humana demanda. Alguém que assuma a existência com responsabilidade, experimentará sempre - e algumas vezes de modo muito intenso - que somos estrangeiros, saudosos de uma Pátria não conhecida, mas para a qual o coração teima em apontar, apesar de não ter uma clara imagem dela. Basta recorder a palavra da Epístola aos Hebreus: “Não temos aqui cidade permanente, mas estamos à procura da que está para vir” (13,14).

Assim, essa angústia do Salmista peregrino, esse aperto de coração do fiel judeu que se põe a caminho de Jerusalém é como aquela penosa consciência do filho pródigo: vivendo longe da pátria paterna, do aconchego e da segurança que o pai lhe proporciona, toma consciência da precariedade da existência humana, cercada de ambiguidades, perigos  e tensões, bem como de tantos e tão variados traços de maldades e ameaças. Por isso mesmo, o fiel clama ao Senhor: “Senhor, livra minha vida dos lábios mentirosos e da língua traidora!”

“Mentira” é o modo como a Sagrada Escritura refere-se aos ídolos: eles são engano e inconsistência, são nada, são ilusão, desprovida de realidade, são como uma miragem que engana e decepciona os que para ela correm! Assim, a língua mentirosa é aquela que engana, fazendo o homem pensar que as fugazes, passageiras e inconsistentes realidades da vida podem encher nosso coração. A palavra mentirosa é aquela idolátrica, que é o contrário da palavra do Senhor, que é a verdade: “Todos os Teus mandamentos são verdade. A Tua palavra, Senhor é eterna, estável como o céu. Eu vi limites em tudo o que é perfeito, mas Teu mandamento não tem confins! “(cf. SI 119/118,86.89.96).

O orante sente-se, portanto, cercado pela incredulidade, pelos ímpios pagãos, desprovido do senso de Deus e do que Lhe diz respeito – empolgados e iludidos, devotos adoradores dos nadas deste mundo - que, com suas línguas enganadoras, apresentam mil modos de ser feliz nas ilusões mundanas e repetem todo o tempo ao fiel: “Onde está o teu Deus?” (SI 42/41,4).

A idolatria é essencialmente mentirosa, como Mentiroso é Satanás, o pai da mentira (cf. Jo 8,44): "A sua língua é uma flecha mortífera, falsa é a palavra de sua boca. Ele diz paz ao seu próximo, mas dentro de si lhe prepara uma cilada" (Jr 9,7). Qual cilada? A pior de todas: fazer-nos crer que as realidades deste mundo nos saciam, fazer-nos pensar que os pães deste mundo matam nossa fome e nos fazem viver de verdade, fazer-nos esquecer a tremenda advertência de que o homem não vive somente de pão, dos pães deste mundo, mas da Palavra que sai da boca de Deus (cf. Dt 8,3; Sb 16,26; Mt 4,4). É tão fácil deixar-se enganar, é tão arriscado colocar o coração em tantos bagulhos que a existência apresenta, em tantas mentiras que o mundo propõe como firmes e consistentes verdades!

Assim, consciente do perigo de cair na armadilha da idolatria, do culto ao nada, à ilusão, à falsidade, o Salmista impreca esses ídolos e os que são seus missionários (basta pensar no que divulgam os meios de comunicação, nos valores e idéias que nos querem meter goela abaixo). Impreca-os em nome do Senhor, que é o Verdadeiro e cuja Palavra verdadeira cria, dá consistência e ordem a todas as coisas e à nossa existência:

"Que te deverá dar, como retribuir-te,
língua traidora?
Flechas agudas de um guerreiro,
com brasas de giesta".

A mentira idolátrica, a mentira que o homem gera e difunde, volta-se contra quem a segue e pore la vive, trazendo em si seu próprio castigo: a palavra mentirosa, que sai da boca como uma flecha maligna, volta-se, como uma flecha com fogo na ponta, contra os que a proferiram, carcomendo-lhes os dias numa vida gasta com o banal, com o superficial, com aquilo que não dá o veradeiro shalom e não aquieta o coração! Quanto ao justo, ao amigo de Deus, que sonha com Jeru-shalaím, visão da paz e da vida querosene em Deus podem ser encontradas, mesmo em meio à escuridão, às flechas do mal, às palavras mentirosas, o Senhor o protege!

Dom Henrique Soares da Costa, 
Bispo Titular de Acúfica e Auxiliar de Aracaju.

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